sexta-feira, janeiro 05, 2007

"Ethical Food" e Comércio Justo

A revista "The Economist" na sua edição de 9-15 de Dezembro, cujo tema de capa era "Good food? - why ethical shopping harms the world", trata dos prós e contras da agricultura biológica, comércio justo e produção local. Apesar de não ser nada claro que os contras superem os prós, há logo uma tomada de posição explicita na capa da revista. O tema é tratado com alguma ligeireza, para não dizer com um simplismo atroz, em que a revista denuncia o seu declarado pendor ideológico para o comércio livre a todo o custo. Não é consensual que os métodos da agricultura biológica sejam sempre menos produtivos, e mais penalizadores para o ambiente no seu conjunto, que os métodos convencionais. Como podemos ver em "Can Organic Farming Feed Us All?".
Quanto aos problemas éticos, e não só, relativos ao comércio justo e, por outro lado, aos métodos tradicionais de produzir alimentos, reflictamos sobre o que diz o filósofo Peter Singer nestes dois artigos
The Ethics of Eating e Why Pay More for Fairness?

Ainda sobre questões ligadas ao comércio justo, ler este texto que pretende resumir um relatório da ONGD OXFAM intitulado "Rigged Rules and Double Standards - trade, globalisation and the fight against poverty" enquadrado na campanha "Make Trade Fair¨:


Mudar as regras: comércio, globalização e luta contra a pobreza.
Relatório da Oxfam International
[31-05-2002] [ José Sousa ]

A Oxfam International acaba de lançar uma campanha com o objectivo de promover um comércio internacional justo. É nesta iniciativa que se enquadra a publicação do relatório “Mudar as regras: comércio, globalização e luta contra a pobreza”. A tese defendida neste relatório é de que o comércio pode funcionar como um poderoso instrumento para a erradicação da pobreza.
A abordagem destes temas é feita, frequentemente, com base em argumentos de natureza ideológica, mascarando os verdadeiros problemas. Há uma tendência para os raciocínios de tipo dicotómico: ou é bom ou é mau, ou se é a favor ou se é contra. Uma outra tendência é a fixação nas médias, que tende a confundir realidades que são distintas.
A complexidade destas questões exige uma discussão muito mais afinada, casuística. Não se trata de saber se questões como a liberalização do comércio, a globalização ou o investimento directo estrangeiro são boas ou são más, importa sim avaliar em que circunstâncias concretas poderão produzir resultados positivos ou negativos e a forma da sua distribuição .
Olhando para a situação actual, o comércio está na prática a contribuir para alargar o fosso existente entre os países ricos e os países pobres. Só que não é, de todo, uma situação inevitável. Resulta, isso sim, de uma estrutura institucional que favorece certos sectores dos países ricos em detrimento da maior parte dos habitantes dos países pobres. As instituições multilaterais como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o sistema Fundo Monetário Internacional (FMI) / Banco Mundial (BM) não são transparentes, sujeitas a um verdadeiro escrutínio público, e a sua agenda é fortemente determinada por interesses ligados às grandes empresas globais que constituem a “vanguarda” do actual processo de globalização.

Comércio e globalização no século XXI

Neste início de século verifica-se uma situação paradoxal: nunca a Humanidade foi tão capaz de produzir tanta riqueza e dispôs de tão poderosas tecnologias, que lhe permitiriam de forma sustentada enfrentar o desafio de proporcionar uma vida decente a todas as pessoas, mas, ao mesmo tempo, nunca como agora correu tão grande risco de enfrentar o colapso da Civilização.
O fenómeno da globalização tem contribuído para uma maior e mais sofisticada integração da economia mundial, nomeadamente entre os chamados países do Norte e os países do Sul. O comércio internacional e os fluxos de investimento a ele associados (“investment follows trade”) têm sido um importante catalisador dessa integração.
O comércio internacional tem crescido muito mais rapidamente que o produto interno bruto (PIB) global, sendo hoje responsável por uma maior fatia do rendimento criado. No entanto, verifica-se uma repartição profundamente desigual dos benefícios e perdas associados a este processo.
O Norte tem sido um claro ganhador, mas a situação do Sul tem-se tornado cada vez mais heterogénea. Já não é possível falar apenas em países em desenvolvimento (PVD), torna-se obrigatório fazer a distinção entre países de rendimento médio e de baixo rendimento. Esta distinção é muito importante porque é frequente confundir-se a realidade do Extremo-Oriente com a da África ou a da América Latina e dentro de cada uma destas regiões entre países com características muito diferentes.
Verifica-se uma crescente participação dos PVD no comércio de produtos manufacturados (têxteis, vestuário) e nos produtos de alta tecnologia (microelectrónica, semicondutores, “software”, etc.). Contudo, estes fluxos de comércio, e de investimento a ele associado, concentram-se num pequeno grupo de países: China, Índia, Brasil, México, Bangladesh, Tailândia, etc. A grande maioria dos países da América Latina e da África Subsariana, e mesmo da Ásia, ainda depende largamente da exportação de produtos primários, as chamadas “commodities”, como sejam os minerais ou produtos agrícolas básicos (café, cacau, algodão, arroz, açúcar, milho, fruta, etc.). O comércio e investimento Sul-Sul já assume também alguma importância.

O comércio como instrumento para a redução da pobreza

A situação actual em termos da participação no comércio é muito desigual. Os países de baixo rendimento têm 40% da população mundial, mas apenas uma participação de 3% no comércio mundial. O valor das exportações dos países ricos atinge 6000 dólares “per capita”, sendo apenas de cerca de 330 para os PVD e de 100 para os de baixo rendimento.
Existem alguns exemplos de países bem sucedidos na luta contra a pobreza que optaram por uma estratégia baseada no incentivo às exportações, sobretudo em áreas onde detinham uma vantagem comparativa, nomeadamente em sectores trabalho-intensivos como o têxtil e vestuário ou a agricultura. O Extremo-Oriente e o Sudeste Asiático são disso exemplo. Desde meados da década de 70, o rápido crescimento das exportações contribuiu para um forte crescimento económico que ajudou a retirar da pobreza mais de 400 milhões de pessoas. Contudo, os benefícios do comércio não são automáticos. É necessário que existam planos de desenvolvimento que permitam que os mais pobres, sobretudo ao nível da pobreza rural e das mulheres, sejam claros beneficiários da abertura de novos mercados para os seus produtos.

O acesso aos mercados

Apesar dos sucessos e de toda a retórica sobre os benefícios do livre comércio propalada no mundo rico, a tendência prevalecente tem sido o aumento das desigualdades como resultado da expansão do comércio mundial. Na origem deste problema estão as regras que determinam as relações de poder nas negociações internacionais. Os países ricos são, para efeitos práticos, quem determina que mercados, como e a que ritmo, são liberalizados.
Os países ricos têm forçado a abertura dos mercados dos países pobres, fazendo-se valer de uma série de estratagemas, ao serviço de interesses nem sempre claros. Convém, desde já, deixar claro que, frequentemente, esses interesses nada têm que ver com a maior parte dos cidadãos do mundo rico, antes pelo contrário.
Teoricamente, a OMC é uma organização democrática que pretende uma abertura gradual dos mercados mundiais com o fim de promover o crescimento económico global. A verdade é que os países ricos usam de critérios duplos: forçam a liberalização dos mercados dos países com estruturas mais frágeis e, ainda por cima, mantêm os seus mercados relativamente fechados, fazendo uso de toda uma panóplia de instrumentos de política comercial, que vão desde barreiras tarifárias (taxas sobre o valor dos produtos importados), não tarifárias (quotas de importação) até todo o tipo de especificações e normas (muitas vezes abusivas). Muitas das disposições dos acordos de comércio negociados na OMC são ambíguas, o que favorece os especialistas em contencioso, regra geral pagos a peso de ouro, em prejuízo, naturalmente, dos países pobres. Além disto, a liberalização tem sido imposta de forma ainda mais drástica por intermédio dos programas de ajustamento estrutural do FMI ou de acordos de comércio regional (NAFTA) ou bilateral.
Fruto de tudo isto, os países pobres enfrentam barreiras à comercialização dos seus produtos que são, em média, quatro vezes superiores às enfrentadas pelos países ricos. No caso do comércio agrícola a situação é, no mínimo, impressionante. Os países ricos (o caso da política agrícola europeia, PAC, é um dos mais significativos) subsidiam uma agricultura intensiva com valores na ordem dos mil milhões de dólares/dia, gerando excedentes imensos. Estes, por sua vez, são canalizados para o mercado mundial a preços abaixo de custo (“dumping”), da ordem de 30%, novamente por intermédio de subsídios. Tudo isto, além de prejudicar gravemente os produtores rurais dos países pobres, é responsável por enormes danos ambientais e um enorme custo para os contribuintes nos países ricos.
Um caso exemplar dos resultados sobre os países pobres é a exportação de milho dos EUA para o México. Os pequenos agricultores dos estados do Sul do país, como Chiapas, não só não conseguem exportar, como são incapazes de vender para o mercado interno, levando ao abandono dos campos e ao engrossar da migração para as cidades ou para o exterior. Em regra, só as mulheres tendem a ficar, com um fardo acrescido na luta pela sobrevivência.
Associado a isto, os países pobres enfrentam oscilações de preços das principais “commodities” (em mais de 50 PVD, mais da metade das exportações dependem de três ou menos produtos primários) que podem ir até quedas da ordem dos 70%, como foi o caso do café.
É de salientar que as perdas de receita advindas desta situação não são de modo algum compensadas pelos montantes da ajuda ao desenvolvimento ou da redução da dívida externa – a ajuda pública ao desenvolvimento da quase totalidade dos países ricos não só não tem cumprido a meta dos 0,7% do PNB, como até tem diminuído.
Na sua maioria, os países pobres acabam envolvidos numa armadilha sem escapatória, na medida em que se vêem impossibilitados de pagar o serviço da dívida quando os termos de troca lhes são de tal ordem adversos. Para cúmulo, a liberalização dos mercados financeiros ainda agrava mais a situação. A volatilidade cambial tende a intensificar ainda mais a queda dos termos de troca.
De nada lhes serve aumentar a produtividade, na medida em que isso agravará ainda mais o excesso de oferta estrutural. Exportar o dobro em quantidade poderá significar perda de receita. Estes preços chegam a ser tão baixos que mal conseguem garantir a sobrevivência, quanto mais pagar despesas de saúde ou educação para os filhos dos camponeses, para já não falar de poupança (salários de menos de um dólar a dólar e meio por dia são já considerados bons, tendo em conta a extrema miséria). Isto em países com tremendas carências em infra-estruturas, acesso ao crédito e à própria posse da terra.
De notar que esta realidade passa despercebida aos consumidores dos países ricos na medida em que não é reflectida nos preços do produto final, revertendo sim para os lucros das multinacionais que controlam o mercado. Só assim se explica que empresas como a Nestlé apresentem sucessivamente elevados crescimentos percentuais dos seus lucros.
Outro exemplo de adiamento no acesso ao mercado dos países ricos diz respeito ao Acordo Multifibras relativo aos têxteis e vestuário. A liberalização progressiva até 2005 não tem decorrido como estabelecido, prevendo-se um súbito levantamento das barreiras naquela data, o que não é bom nem para países como Portugal, nem para países como o Bangladesh, que beneficiou de quotas que lhe foram atribuídas e que poderá enfrentar a concorrência aberta de países como a China.

As empresas transnacionais

O actual processo de globalização reveste-se de uma característica que já se verificou noutros tempos ao nível nacional, aquando de rápidas transformações económicas e tecnológicas. Tem que ver com o desfasamento entre o poder das grandes empresas e a sua regulação política e social por instituições legítimas e democráticas. A situação actual poderia ser qualificada como de pilhagem institucionaliza, sem exagero nos termos. Este desequilíbrio conduziu no passado, entre outras coisas, à Grande Depressão e foi determinante de guerras mundiais.
Vários acordos negociados no âmbito do Uruguai Round, com destaque para os TRIPs (direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio), TRIMs (investimentos relacionados com o comércio) e o GATS (liberalização dos serviços, sobretudo financeiros, em detrimento do factor trabalho), conferiram poderes e direitos de tal forma formidáveis às grandes empresas transnacionais que estas fazem tábua rasa das mais elementares regras de protecção do trabalho definidas pela Organização Internacional do Trabalho ou de tratados internacionais negociados em instâncias bem mais legítimas, como seja a Convenção para a Diversidade Biológica da ONU.
O investimento directo estrangeiro (IDE) é um veículo importante de integração da economia mundial. No entanto, para que o seu potencial como motor de desenvolvimento possa ser liberto é necessária uma série de condicionantes. Ora, os acordos citados têm dado rédea solta às transnacionais, permitindo-lhes todo o tipo de abusos, e não apenas em relação aos países pobres (o Canadá e o estado da Califórnia foram disso exemplo).
Uma das condicionantes para o IDE promover um crescimento equilibrado prende-se com o estabelecimento de laços com as empresas locais, através da transferência de tecnologia, formação técnico-profissional, subcontratação, etc. Isto permite aumentar o valor acrescentado nacional.
Sucede que na grande parte dos casos, cujos exemplos mais notáveis são as “maquiladoras” do México e as zonas de processamento para exportação do Bangladesh (onde a Constituição é suspensa, impedindo-se a filiação em sindicatos e recusando-se quaisquer direitos a subsídios de doença, de desemprego ou protecção da maternidade), as empresas limitam-se a proceder à montagem de componentes importados, com valor acrescentado próximo de zero! Isto tanto em relação aos têxteis como aos produtos de alta tecnologia. Ironia da situação, o México aparece nos relatórios internacionais como um dos países mais empreendedores e onde mais cresceram as exportações de alta tecnologia.
Para agravar ainda mais a situação, os países ricos impõem tarifas reajustáveis em função do grau de processamento dos produtos importados, o que inviabiliza qualquer tentativa de progresso. E, como se isto não bastasse, as transnacionais têm sido responsáveis pela destruição de centros de I&D das empresas que entretanto adquiriram nos PVD, como sucedeu no Brasil.
Mas situações ainda mais aterradoras dizem respeito a dois aspectos do acordo TRIPs: um relativo ao patenteamento de medicamentos e o outro ao patenteamento de materiais genéticos.
A defesa da propriedade intelectual é, naturalmente, legítima e existe uma justificação económica para a sua existência. No entanto, tem havido um enorme abuso nesta área, com recurso a autênticos truques para prolongar os prazos das patentes, sem qualquer consideração por questões de saúde pública, como ficou demonstrado em relação à atitude das farmacêuticas no caso da África do Sul e do tratamento dos doentes com sida.
No domínio dos materiais genéticos, as grandes companhias de biotecnologia têm espoliado sem qualquer pejo a riqueza genética, concentrada em grande parte nos PVD, sem qualquer retribuição (biopirataria). Esta autêntica fraude ocorre, por exemplo, via patenteamento de sementes de plantas alimentares, como o feijão amarelo mexicano enola ou o arroz basmati, e de alguns genes de milho da Índia (todos estes casos por empresas americanas), apossando-se assim do que é afinal património dos respectivos povos. As restrições impostas a agricultores de países pobres, e não só, que não podem dispor das sementes, e a redução da diversidade genética põem graves problemas de segurança alimentar em todo o mundo, em especial nos PVD.

Mudar as regras

Para que todo o potencial de promoção do crescimento económico associado ao comércio possa converter-se em desenvolvimento equilibrado e redução generalizada da pobreza é necessária uma autêntica revolução. Desde logo no desenho institucional das organizações internacionais. Mas também nas políticas internas de combate à pobreza dos PVD.
Entre outras coisas há que reforçar o carácter multilateral das negociações sobre comércio da OMC, evitando-se os abusos praticados em acordos bilaterais e abolindo as políticas de condicionalidade do FMI no que respeita à liberalização do comércio.
É indispensável reforçar os meios da assistência técnica e jurídica aos PVD, de modo a capacitá-los para a condução das negociações com os países ricos. Impõe-se também uma maior transparência na formulação da agenda das negociações, com a participação de instituições que representam interesses mais amplos, como sejam parlamentos nacionais ou ONG.
Outra reforma essencial prende-se com a garantia de preços mínimos para as “commodities”, até como forma de garantir a sustentabilidade das dívidas externas dos respectivos países. Há que impor limites às operações das bolsas de mercadorias e de valores (mercado de capitais).
Recomenda-se em paralelo o desenvolvimento de uma política “anti-trust” ou anti-monopólio à escala global, à semelhança do que aconteceu nos EUA no final do século XIX.
Ao nível das políticas de combate à pobreza deve ser fomentada uma distribuição mais equitativa de recursos, que permitirão aos pobres beneficiar do crescimento económico e contribuir para uma maior eficiência económica. É preciso promover uma reforma agrária dos grandes latifúndios (gigantescas propriedades permanecem incultas ao mesmo tempo que há camponeses que não têm que comer), garantir o acesso ao crédito e aos mercados, nomeadamente através do desenvolvimento de redes viárias e, claro está, promover os padrões de saúde e educação.
Em suma, a conclusão que se retira deste relatório é que a tese defendida não passa, por enquanto e em termos gerais, disso mesmo, uma tese! É o interesse próprio, bem informado, dos países ricos que recomenda alterações significativas nas regras que regulam o comércio mundial. Caso contrário, vamos todos ao fundo!

José Sousa

(economista, voluntário da Oikos)
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